
Imagem da Tekoa Nhu'ú Poty (Aldeia Flor do Campo), 2017.

Cerâmica M'bya Guarani na Tekoá Nhu'ú Poty Aldeia Flor do Campo
Barra do Ribeiro
RS
Olá, e bem-vindo ao site.
O potencial pedagógico do material presente neste site é enfatizado primeiramente ao buscar despertar a curiosidade sobre cenários desconhecidos dos alunos, especialmente das áreas de artes visuais, antropologia, arqueologia e ciências sociais.
Após muitas idas e vindas em 2017 à Terra Indígena Flor do Campo para acompanhar a atividade cerâmica de três mulheres da aldeia (Kerexu-Antônia, Dona Maria e Zuma) o resultado desse trabalho encontra-se aqui, à sua disposição.
Este projeto só foi possível pelo interesse de Kerexu Jera Poty, em permitir e contribuir para a divulgação de sua técnica ancestral de produção de peças cerâmicas. Há vários anos, Kerexu está assentada na Terra Indígena Flor do Campo, localizada na vinícola Laurentia, em Barra do Ribeiro, Rio Grande do Sul. Como tantos outros cidadãos ancestrais brasileiros, de tradição nômade, sua residência ainda é incerta, apesar de sua etnia e família terem residido por mais 600 anos nessa região. Esperamos que essa contribuição venha a auxiliar outras pesquisas na área e despertar para o conhecimento e a apreciação da cultura indígena m'bya guarani!
Dê uma olhada, navegue e conheça um pouco sobre a bela tradição cerâmica desse povo.
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Pesquisa em Palavras
Kerexu Jera Poty: reflexões a partir de Terra Gera Flor
Sabíamos pouco sobre a cerâmica m'bya guarani. Ao conhecermos moradores da terra indígena Tekoá Nhu'ú Poty (Aldeia Flor do Campo), situada em Barra do Ribeiro, RS observamos que essa atividade se mantinha viva no local devido à Kerexu Jera Poty, a Antônia, uma mulher m'bya de 52 anos. Observamos seu trabalho com a argila.
A cerâmica mbya envolve algumas etapas para ser feita: a coleta da argila e seu refinamento, a modelagem e secagem das peças (eventualmente alguma peça é pintada) e a queima. Desse fazer surgem potes, animaizinhos e petenguás, que são os cachimbos cerâmicos. Com consentimento de Antônia e do cacique da aldeia, o senhor Sergio, iniciamos em setembro de 2017 a gravar em vídeo seu trabalho com a cerâmica.
A partir daí foram idas e vindas entre Porto Alegre e Barra do Ribeiro para planejarmos e filmarmos. Antônia convidou para participarem das gravações alguns familiares que vivem em uma aldeia vizinha: sua mãe (Dona Maria), sua irmã (Zuma) e uma sobrinha (Manoela). Esse trabalho resultou em vídeos onde estão registrados os encontros dessas mulheres para produzir cerâmica na Flor do Campo.
Às vezes ficamos pensando se os vídeos são uma forma de salvaguardar essa prática cerâmica de matriz indígena. Usamos as palavras salvar e guardar no sentido de proteger um conhecimento. Proteger de quem, do que? Da perda. Do esquecimento. Do desaparecimento. Se algo precisa ser protegido é porque está em perigo. É necessária argila para fazer a cerâmica e para ter argila é preciso terra. Terra limpa para ser tocada pelas mãos, alisada, amassada, transformada em utensílios que depois vão servir para preparar o alimento, para os cachimbos, para brincar. Mas nesse país terra é para poucos. A terra é dos índios, mas não para eles.
Vamos falar dos vídeos. Neles aparece a terra indígena, o ventinho suave que soprava nos dias de gravação, o riacho que serpenteia justo atrás das casas, as galinhas que ciscavam livres por todos os lados, as árvores magníficas porque são velhas e porque são velhas estavam carregadas de bromélias e de barbas de bode que se balançavam suavemente. Principalmente aparece o trabalho das mulheres com a argila. Antônia coletando, preparando e modelando o barro com seus parentes; ainda que tais atividades soem simples quando descritas, ao observarmos as imagens vemos que elas são fruto de um saber complexo passado de geração em geração, acumulado ao longo de séculos de convívio e de conhecimento da terra, de seus ciclos, de seu temperamento. A atividade das mulheres ao trabalharem cuidadosamente, lentamente denotam saberes sofisticados de quem percebe esse labor vinculado a um entendimento da terra como um ser vivo, com quem se pode conversar e aprender.
A produção vídeo-gráfica que realizamos na Flor do Campo nos parece auto-reflexiva, pois faz com que ele olhe para si mesmo como vídeo. Um recurso usado para isso foi trabalhar o vídeo por meio de uma linguagem que não é a sua: a linguagem do cinema. Em vários momentos as protagonistas mostram que estão sendo filmadas quando olham para a câmera deixando claro que a gravação não é seu cotidiano. Ali nada é natural. Elas não se escondem em uma suposta naturalidade necessária, o que faz com que a câmera esteja presente revelando-se como o aparato de captura que é. E por isso mesmo não são aparência. Não aparentam fazer outra coisa que não seja a que fazem no momento das filmagens: elas mostram que interromperam seu cotidiano para estar em cena, em uma atitude às vezes tímida, mas também curiosa.
Ao mostrar que estão atuando as protagonistas não deixam que nos escondamos atrás da câmera. Elas marcam a distância entre o que filma e o que é filmado e provocam inquietude em quem grava. O olhar delas diretamente para a câmera também estabelece e demonstra uma distância, cria um espaço. Há uma assimetria em tensão: elas e nós. Esse desconforto não será dissolvido por meio da edição. Não se busca disfarçar a complexidade das relações. Ao contrário, é preciso que o branco possa interrogar o que faz com seus aparelhos. É preciso que surja um mal-estar que nos leve a sentir em como ao longo de séculos se tem tentado derrotar esse índio. Esse mal-estar talvez nos ajude a recuperar o que perdemos em humanidade. E se arriscamos a pensar que algo pode ser recuperado é porque Antônia e sua família não são seres precários. São fortes. E frágeis. Porque é possível ser forte e frágil ao mesmo tempo. Estão abertas, vulneráveis, expostas, mas cada uma na sua singularidade; não há uma indígena genérica. Elas são muito diferentes entre si e mantém com delicadeza a alteridade que as constitui. Há uma luz diferente em seu cotidiano que vem de uma suavidade e de uma alegria que permaneceram, que não se perderam em meio a séculos de dureza e de extorsão. Há algo da ordem do indizível. Algo da ordem do humano que se recusa a ser tocado, a ser capturado. Elas não se deixam capturar.
Na Flor do Campo permanecem poesia, beleza, cantos, risadas em meio ao que não os favorece: a terra é pouca e não está demarcada.
Na aldeia tudo é vivido, diferentemente do modo da escola de branco. A criança aprende por estar junto, ao ver, conviver, fazer. Um menino muito pequeno em uma das cenas corta um galho de árvore com um grande facão. Atividade perigosa para uma criança. Os indígenas o acompanham com o olhar, sabem o que o menino está fazendo e o que poderia ocorrer. Mas deixam o menino aprender a cortar a madeira. Ninguém está inquieto a não ser nós que gravamos a cena. Seus parentes estão calmos, seguem suas atividades e o menino continua a cortar a madeira. Examina o galho. Estuda o galho para ver qual o melhor ângulo para usar o facão. Experimenta trocar o galho de lado. Ele aprende renovando a seu modo o que sempre foi feito. Há uma forma de comunidade na sua descoberta de como cortar o galho.
E tem as palavras, a voz, uma cultura baseada na tradição oral, (mas não só: são povos também do grafismo). Mas há uma língua que tem outro modo de dizer as coisas, com um ritmo singular. Nossos ouvidos ficam em contato com uma escuta outra, atentos para ouvir (e saborear) como soa o que o outro fala. E, principalmente estamos escutando uma cultura baseada em silêncios. Em nenhum dos dias de gravação presenciamos a verborragia. As palavras são usadas sem precipitação. Nunca muitas, nunca desnecessárias. Precisas. Sempre estão à vontade nos longos silêncios (as palavras e eles).
São em parte os silêncios que instituem um outro tempo. Um tempo mais lento que se buscou fazer presente em passagens que permitam ao olhar não somente ver, mas também repousar sobre o que vê, como na cena da ponte, do forno, da água. É como se não houvesse pressa para a cena seguinte. Pouso, como um pássaro que se esquece de alçar voo e fica balançando sem pressa em um galho. Repouso. O voo virá, mas depois.
Os m'byas da Tekoá Nhu'ú Poty e a família de Kerexu ainda caminham procurando a terra sem mal permanecendo vivos, inventando modos de continuar, de prosseguir em meio ao que não é mais abundância. Ou em meio ao que é a abundância de tudo o que não favorece que sua cultura floresça.
Prática da Pesquisa
Cerâmica M'byá-guarani na terra indígena Flor do Campo

Kerexu modelando um pote de argila. 2017
A pesquisa junto às ceramistas foi realizada de abril até dezembro de 2017 e envolveu algumas etapas: coleta de argila em barreiro (locais para coleta do barro), refinamento e processamento da argila, construção de peças cerâmicas (modelagem, decoração e polimento), queima de peças cerâmicas em fogueiras tradicionais e em fornos artesanais na terra indígena Flor do Campo, no município de Barra do Ribeiro, RS.
Atualmente há dados indicativos de que a atividade cerâmica tradicional é praticamente inexistente na maioria das aldeias do RS. Em projetos desenvolvidos anteriormente constatamos que é na região de Barra do Ribeiro onde ainda se pratica tal produção: na terra indígena Flor do Campo, onde três mulheres indígenas M'byá mantém tal tradição viva.
As indígenas produtoras de cerâmica são falantes da língua originária de seu grupo. Os processos de transmissão de conhecimento pelos indígenas M'byá-guarani se baseiam na oralidade, no tempo lento, na repetição, na demonstração.
Sobre Fornos e Queimas: modelos e funcionamento
Queima cerâmica em fogueira aberta:
A maior parte das cerâmicas m'byas guaranis é queimada em fogueira aberta, no mesmo fogo no qual são preparados alimentos. As peças secas são colocadas diretamente no fogo e permanecem ali por uns 30 minutos.
Queimas cerâmicas no Tatakuá (casa do fogo):
Forno de Chão
Massa: mistura de açúcar, esterco de vaca, capim seco e argila vermelha coletada no local. Intercalar camadas de massa com camadas de tijolos maciços vermelhos para subir as paredes do forno em forma de iglu, a partir de uma base composta por tijolos refratários. Recobrir a estrutura com uma massa feita com esterco de vaca e açúcar. Chaminé colocada na parte superior posterior do forno feita com lata de azeite cortada no fundo e topo. O fogo é feito com gravetos e esterco de vaca seco em uma das laterais internas do forno. As peças são colocadas na outra lateral e a porta do forno fechada com uma lata ou tijolos. A porta é selada no início da queima por fora com mistura de argila, esterco e palha. Ao término da queima, deixa-se esfriar o forno e desfaz-se a porta para retirar as peças.
Forno de Buraco:
Cava-se um buraco circular no chão (uns 60 cm de diâmetro). Ao redor do buraco é erguida uma parede com uma mistura de argila, palha seca e esterco de vaca. Essa parede é erguida nas laterais e atrás do buraco, deixando-se uma porta na frente. Uma lata de azeite cortada é colocada como chaminé no topo do forno. Para a queima coloca-se gravetos e esterco seco no fundo do buraco. Sobre a superfície do buraco coloca-se uma grelha de metal. As peças são dispostas sobre a grelha. Ateia-se fogo e fecha-se a abertura frontal com tijolos e uma mistura de argila e palha. Após o término da queima, deixa-se esfriar o forno e desfaz-se a porta para retirar as peças.


Documentando o trabalho
Videos realizados no projeto
Os vídeos foram realizados durante o ano de 2017 e enfocam a produção cerâmica de Kerexu (Antônia) e sua família.
Vídeo 1 apresenta a Aldeia Flor do Campo
Vídeo 2 apresenta a coleta da argila
Vídeo 3 apresenta a modelagem das peças de cerâmica
Vídeo 4 apresenta a queima das peças de cerâmica
Trilha sonora dos vídeos:
Ñande Reko Arandu, Memória Viva Guarani (2000).
Antônia (Kerexu Poty)
Galeria das fotos realizadas durante o projeto
Fotografias de Cerise Gomes, Denis, Rodriguez e Vicente Carcuchinski - UFRGS
Referências
Referências
BERGAMASCHI, Maria Aparecida, Maria Dalla Zen, Maria Xavier (orgs). Povos Indígenas e Educação. Porto Alegre: Mediação, 2012.
CARELLI, Vincent. Vídeo nas Aldeias. Disponível em: http://www.videonasladeias.org.br
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
KRENAK, Ailton. Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.
Povos Indígenas no Brasil. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-mbya/1729
Rádio Yandê. Disponível em: http://radioyande.com/
RODRIGUEZ, Denis. A cerâmica Mbya Guarani e a produção de vídeos como prática de extensão. XIII Salão de Ensino UFRGS, 2017.
Disponível em:
Saberes Indígenas na Escola. Disponível em: https://www.ufrgs.br/saberesindigenas/
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo; FERRARI, Florencia;EUVALDO, Celia. Metafísicas Canibais. São Paulo: Ed. Cosac & Naify, 2015.
Equipe de Trabalho na Terra Indígena Flor do Campo:
Cláudia Zanatta, Denis Rodriguez, Leonardo Remor, Vicente Carcuchinski, Cerise Gomes, Bruna Gabriele Rodrigues, Fernanda Lenzi, Tahyú Grehz, José Thiago Ruhee.




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